Bem-vindo ao Blog da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde - Núcleo SP

A Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde trabalha na perspectiva da construção de políticas públicas para a saúde integral sda sociedade brasileira, considerando as epecificidades do povo de terreiro. Sua missão é a luta pelo direito humano à saúde com ênfase nas questões de gênero e raça.

Aqui você encontrará informações sobre as demandas e a atuação das comunidades tradicionais de terreiro no universo da saúde pública. Questões como saúde da população negra, saúde da mulher, humanização, atenção, prevenção e assistência, entre outras, são disponibilizadas aqui por especialistas e lideranças políticas de todo o Estado de São Paulo.

O reconhecimento das comunidades tradicionais de terreiro como núcleos de promoção de saúde e, a releitura de temas como liberdade religiosa, laicidade, o impacto do racismo na saúde, partipação popular, controle social e a necessidade de maior cooperação entre o Estado e as Religiões Afro-Brasileiras são alguns dos pontos que nos mobilizam na busca pela garantia do direito humano a saúde. A Rede é composta dos Sacerdotes, Sacerdotisas e iniciados de diferentes tradições de matrizes africanas em todo o país. Para falar com a Rede, envie e-mail para saudenoterreiro@yahoo.com.br

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sábado, 15 de novembro de 2008

O acordo Brasil-Vaticano

No dia 13 de novembro, o presidente Lula assinou um acordo com o Vaticano que impõe diversas condições sobre o funcionamento da igreja e da fé católica no país. Esse acordo vem sendo costurado há algum tempo em absoluto segredo, e não é para menos. As autoridades de ambos os lados se apressaram em afirmar que ele não concede privilégio nenhum, exatamente porque ocorre o contrário. 

Para amenizar o golpe, o documento cita diversas vezes a legislação brasileira. Apesar disso, ele abre diversas brechas que atentam diretamente contra princípios fundamentais da democracia, e por isso vale a pena analisar alguns artigos com cuidado.

O artigo sexto, por exemplo, determina que
As Altas Partes [Brasil e Vaticano] reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro, e continuarão a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica ou de outras pessoas jurídicas eclesiásticas, que sejam considerados pelo Brasil como parte de seu patrimônio cultural e artístico.

§ 1º. A República Federativa do Brasil, em atenção ao princípio da cooperação, reconhece que a finalidade própria dos bens eclesiásticos mencionados no caput deste artigo deve ser salvaguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sem prejuízo de outras finalidades que possam surgir da sua natureza cultural. 
Esse artigo faz tábua rasa de todas as contribuições da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) em quinhentos anos de Brasil, declarando-as todas igualmente dignas. De imediato, os críticos apontarão o genocídio cultural dos indígenas, a Santa Inquisição, quatro séculos de implacável perseguição religiosa, o apoio à escravidão, a oposição ferrenha às camisinhas, aos métodos de contracepção, ao divórcio, às técnicas reprodutivas, ao uso de células-tronco e tantas outras ações do mesmo tipo como argumentos em contrário. Se esses argumentos são suficientemente fortes para fazer a balança pender para o lado contrário, simplesmente não cabe ao Estado julgar. Do contário, ele estará rompendo a necessária neutralidade imposta pela laicidade, oferecendo um apoio, ou ao menos especial deferência, com sabor de aliança -- vetada pelo artigo 19 da Constituição Federal.

Além disso, esse dispositivo iguala preciosas jóias da arquitetura e da arte brasileira com cada pequena igreja sem qualquer valor cultural ou artístico que mereça atenção do Estado, deixando aberta uma via para que se pleiteie que qualquer parte do patrimônio da ICAR receba tratamento especial do Estado, incluindo recursos públicos. É um notável contraste com o patrimônio cultural de diversos outros grupos religiosos, que são tradicionalmente menosprezados. Em suma, todos os demais grupos que entendem que seu patrimônio também deve ser salvaguardado deverão entrar na justiça. A ICAR, por outro lado, já tem direitos plenos assegurados que agora são reiterados, o que constitui uma gritante assimetria de posições e de direitos.

O mesmo se dá com respeito ao ensino religioso. Segundo o artigo décimo-primeiro, 

A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.

§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação. 
Grande parte do artigo é simples cópia da legislação brasileira, mas há uma diferença importante: apesar de proibir discriminação, ele fala em "ensino religioso católico", o que reforça a interpretação de que a disposição estabelece ensino confessional. A legislação atual já proíbe o proselitismo, e mesmo assim alguns Estados implementaram ensino confessional. O artigo acima segue a mesma trilha, abrindo caminho para institucionalizar a confessionalidade.

O artigo décimo-quarto institui que

A República Federativa do Brasil declara o seu empenho na destinação de espaços a fins religiosos, que deverão ser previstos nos instrumentos de planejamento urbano a serem estabelecidos no respectivo Plano Diretor.
Aqui o acordo inova, introduzindo deveres positivos do Estado face à religião. Não há nenhum paralelo a essa disposição na legislação brasileira, exatamente porque isso é vedado pelo princípio da laicidade. Ao institituir esse dever, o Estado invade a seara religiosa para se tornar ator e diretor da cena religiosa, quando deveria ser apenas contra-regra. 

Esse dispositivo introduz o peso do Estado no cenário religioso, criando vários tipos de privilégios de alguns grupos sobre outros. Em primeiro lugar, ele interfere no mercado imobiliário, retirando a possibilidade de livre negociação dos espaços urbanos, respeitadas as leis de zoneamento. Sabe-se que todos os espaços urbanos têm potencial de gerar renda, e portanto essa destinação especial tem o poder de conceder esse privilégio aos grupos religiosos em detrimento das demais
possibilidades de uso, que deveriam gozar de direitos iguais.

Ademais, uma medida desse tipo privilegia a religião organizada sobre as demais religiosidades. A moderna diversidade religiosa, cujo interesse deveria guiar as políticas com verdadeiro interesse público, inclui pagãos e neo-pagãos, espiritualistas, animistas e vários outros grupos que não possuem instituições formais, hierarquias ou locais fixos de culto comum. Além disso, uma parcela considerável da população brasileira tem crenças religiosas mas não está ligado a nenhuma instituição ou confissão específica, e outra parcela é de ateus e agnósticos. A política especificada pelo artigo décimo-quarto acaba por financiar os grupos religiosos com bens imóveis à custa dos demais. Fazer isso é determinar que existem classes de cidadãos com posições filosóficas que devem ser amparadas pelo Estado, e classes de cidadãos com posições filosóficas que não devem ser amparadas pelo Estado, o que não só institui que existem cidadãos, instituições e ideologias de segunda categoria, violando o princípio da igualdade, como constitui flagrante violação à liberdade de consciência e crença.

Já no artigo oitavo, lê-se:

A Igreja Católica, em vista do bem comum da sociedade brasileira, especialmente dos cidadãos mais necessitados, compromete-se, observadas as exigências da lei, a dar assistência espiritual aos fiéis internados em estabelecimentos de saúde, de assistência social, de educação ou similar, ou detidos em estabelecimento prisional ou similar, observadas as normas de cada estabelecimento, e que, por essa razão, estejam impedidos de exercer em condições normais a prática religiosa e a requeiram. A República Federativa do Brasil garante à Igreja Católica o direito de exercer este serviço, inerente à sua própria missão. 
De fato, a ICAR tem esse direito e deve continuar a tê-lo. O curioso é que esse direito já é assegurado pela Constituição Federal, e é notório o fato de que ele vem sendo exercido plenamente e sem nenhum revés há muito tempo. Em alguns casos existe inclusive benefício especial, como se dá nas capelanias militares católicas, que são muito saudáveis e prósperas, e regidas por dispositivos legais especiais, enquanto inexistem quaisquer capelães de confissões não-cristãs.

Por outro lado, há um grande número de casos registrados de sacerdotes de religiões afro-brasileiras que não conseguem entrar em hospitais, prisões e quartéis para exercer seus direitos constitucionais. Ou seja: o acordo com o Vaticano graciosamente repete um direito de quem já o exercia plenamente enquanto os demais grupos continuam sem conseguir exercer o mesmo direito. 

O mesmo espírito permeia diveros outros artigos. O artigo segundo garante o exercício público das atividades da ICAR; o terceiro reafirma sua personalidade jurídica; o quinto concede direitos e benefícios comuns às entidades assistenciais; o sétimo dá proteção a sua liturgia e locais de culto; o décimo reconhece o direito aos institutos de formação e cultura; o décimo-segundo reconhece validade civil do casamento religioso; o décimo-quinto reconhece sua imunidade tributária e iguala as instituições sociais e educacionais da ICAR sem fins lucrativos às entidades filantrópicas.

Na teoria, todos esses dispositivos só repetem o que já está escrito na lei brasileira. Na prática, eles reconhecem direitos de quem já os exerce, e deixa ao Deus-dará quem nunca conseguiu exercê-los de fato.

Talvez isso não fosse tão grave na Suíça. Aqui no Brasil já existe uma longa tradição de que alguns são mais iguais do que os outros, mesmo perante os tribunais. O judicário tem o mau costume de aduzir motivações religiosas em sentenças relativas a direitos sexuais e reprodutivos, e alguns juízes chegam até a indicar a religião que devem seguir os presos com benefício a liberdade condicional. O Legislativo e o Executivo não ficam atrás e utilizam amplamente ritos e livros religiosos em seu cerimonial, além de criar leis com viés religioso. Não é coincidência nenhuma que o viés em todos esses poderes seja o mesmo que agora se quer consolidar com o acordo internacional.

Ainda que ele não instituísse de fato nenhuma diferença com relação às práticas correntes, o acordo em questão se dá através de um instrumento legal que nenhum outro grupo religioso ou arreligioso pode ter, pois só a ICAR tem um Estado que a representa. Essa incidental conjuntura histórica não pode ser utilizada para fazer prevalecer o direito de alguns enquanto os demais permanecem desamparados pelo Estado. No mínimo, o ato assinado com o Vaticano vai servir para sacramentar as diferenças já existentes, dando motivos mais claros para avançar sobre a laicidade do Estado já que existe uma, e somente uma confissão religiosa, que fixou acordo com o Estado brasileiro. Juízes, deputados e senadores terão um motivo a mais para justificar seu viés, mesmo que ao arrepio da lei.

Por isso, é da maior importância lutar contra a ratificação desse acordo no Congresso Nacional. As forças da sociedade civil, e em especial os grupos mais atingidos com as constantes violações da laicidade do Estado brasileiro, como minorias religiosas e mulheres, devem se organizar para pressionar os parlamentares nesse sentido e fazer valer a defesa intransigente dos direitos individuais que deve caracterizar toda democracia sólida.

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